quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Por que os saqueadores deveriam ler Rousseau


JOHN KAY
DO "FINANCIAL TIMES"

O Reino Unido viveu duas crises neste mês de agosto, uma nas ruas e uma nos mercados. O filósofo francês Jean-Jacques Rousseau percebeu a questão comum três séculos atrás. As gangues que ele observou não estavam nas ruas das cidades ou nas bolsas de valores --eram caçadores. "Para que um cervo pudesse ser abatido, todo o mundo via que ... cada um teria que conservar-se fielmente em seu posto; mas se uma lebre por acaso estivesse ao alcance de qualquer um deles, não se duvidava que ele a perseguiria sem escrúpulos, e, tendo abatido sua presa, se importaria muito pouco se, pelo fato de tê-lo feito, tivesse levado seus companheiros a deixar de abater a deles."

Rousseau foi um crítico precoce e incisivo da ideia de que o comportamento autointeressado resulta necessariamente no benefício de todos. Para que se abatesse um cervo na caçada, seria preciso determinar valores comuns e provavelmente impor esses valores por meio de algum tipo de hierarquia. Sem essa estrutura, não haveria mais que uma lebre ocasional para o jantar. É pouco provável que as pessoas que introduziram o conceito de "comer o que você mata" nos serviços profissionais modernos tenham lido Rousseau. E vale apostar que tampouco o haviam feito as pessoas que roubaram artigos eletrônicos das lojas de Tottenham que tiveram suas vitrines quebradas.

Duas teorias econômicas amplas descrevem a alocação de renda e riqueza. A teoria do poder afirma, em linhas gerais, que as pessoas recebem aquilo de que se apropriam: da floresta, dos mercados ou da vitrine da loja. A distribuição de renda reflete a distribuição do poder. Isso foi verdade, claramente, durante a maior parte da história: o proprietário de terras pegava o que podia de seu locatário, o barão pegava o que podia do proprietário de terras, o rei pegava o que podia de todo o mundo. O sexto duque de Muck era rico porque o primeiro duque de Muck tinha sido um líder de gangue especialmente bem sucedido. A teoria alternativa reza que o que as pessoas recebem reflete sua produtividade marginal --quanto elas, pessoalmente, acrescentam ao valor de bens e serviços. A teoria da produtividade marginal possui muitas atrações, especialmente para as pessoas que são bem pagas: se aquilo que elas recebem é produto de seus próprios esforços, sua recompensa com certeza é merecida.

A organização colaborativa apenas ocasionalmente era necessária em uma sociedade agrícola em que não havia títulos de crédito garantidos por ativos, nem produtos elétricos nas lojas. Mas em uma economia moderna complexa, assim como em uma floresta povoada por cervos, a produção requer o envolvimento de muitas pessoas. Na descrição que fez de uma fábrica de alfinetes, Adam Smith se maravilhou com a eficiência resultante desse trabalho em conjunto. Mas se, como ele descreveu, um homem produzia o ferro e outro o esticava, quem poderia definir qual era a produtividade marginal de cada um? E qual era o produto marginal do executivo-chefe da fábrica de alfinetes, ou da pessoa que protegia a exposição a divisas estrangeiras sobre os alfinetes inacabados, cujas contribuições o estudioso escocês deixou de mencionar, numa omissão inexplicável?

Se a fábrica de alfinetes realmente aumentava a produtividade da fábrica por um fator de pelo menos 240, como afirmou Smith, provavelmente havia um superávit quando os assalariados tinham recebido seu produto marginal, fosse ele qual fosse. E, quando chegava a hora de dividir esse superávit, a distribuição da autoridade no interior da fábrica de alfinetes seria crucial. Essa distribuição com certeza favoreceria o executivo-chefe. Como o executivo-chefe redigiu --ou, no mínimo, encomendou-- o relatório anual da fábrica de alfinetes, o argumento moral e econômico poderia ser colocado de ponta-cabeça. Se você tivesse sido pago um valor alto, isso mostraria que você contribuíra muito. O valor recebido era justificado por esse fato apenas. Assim a ética da recompensa justa pelo esforço feito deu lugar à cultura atual, em que o direito é de quem detém a posse.

Uma pesquisa recente feita com crianças --pela Sky Television, surpreendentemente-- mostrou que, onde elas antes desejavam tornar-se profissionais de algum tipo quando crescessem, hoje aspiram tornar-se celebridades. Elas esperam se tornar astros pop ou jogadores de futebol, não médicos ou professores. Como o sexto duque de Muck, elas querem respeito: ser valorizadas pelo que são, não pelo que contribuíram. É claro que as crianças dizem aos adultos o que estes querem ouvir. Mas as expectativas dos adultos representam uma confirmação adicional de até que ponto os valores econômicos e sociais foram erodidos.



Tradução de Clara Allain

Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/mundo/961171-por-que-os-saqueadores-deveriam-ler-rousseau.shtml

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