Brasil e EUA precisam decidir qual é o lugar do outro em sua estratégia nacional, afirma o embaixador aposentado Rubens Barbosa, que está lançando nesta terça, 27, o livro "O Dissenso de Washington - Notas de um Observador Privilegiado sobre as Relações Brasil-Estados", baseado nos cinco anos, de 1999 a 2004, em que chefiou a embaixada brasileira na capital americana.
Ze Carlos Barretta/Folhapress |
Rubens Barbosa em entrevista à Folha |
De um lado, afirma ele, os EUA têm que mudar sua percepção sobre o Brasil. "O Brasil é visto como um país influente, moderador aqui na região, e só. Nos últimos anos cresceu, está agindo fora da região, e vai continuar nessa marcha de ocupar espaços globais. Como os EUA vão lidar com isso?"
Do outro, diz, o Brasil tem que resolver o que quer da relação com os EUA. "O que a gente quer? É cooperação? Não estou pensando só na área comercial, que depende muito da iniciativa privada. Mas há possibilidade de cooperação na área de inovação, tecnologia da informação, na qual os EUA são o país mais desenvolvido do mundo."
Abaixo, os principais trechos da entrevista de Barbosa, que passou 42 anos no Itamaraty e hoje é consultar de negócios, assessor da Fiesp (federação das indústrias de São Paulo) e editor da revista "Interesse Nacional".
Além dos episódios da relação bilateral, o livro gira em torno de cinco fatos: a eleição do George W. Bush, que mudou a sociedade americana; o 11 de Setembro; a guerra do Afeganistão; a guerra do Iraque e a eleição de Lula no Brasil. É muito raro para um embaixador vivenciar tanta coisa importante.
O livro não pretende ser um trabalho acadêmico --não tem notas de pé de página-- nem uma análise crítica da política externa brasileira. É um relato das coisas que eu vivi lá durante cinco anos e que têm a ver com a relação Brasil-EUA.
Do ponto de vista americano, isso é mais grave. Agora estamos começando a investir nos EUA, mas eles têm grandes interesses aqui. Perderam uma oportunidade com o crescimento do Brasil, e nós perdemos, acho eu, nos últimos oito anos, também uma oportunidade grande. Pela primeira vez na história, menos de 10% de nossas exportações vão para os EUA, que são o maior mercado do mundo. Quando cheguei lá eram 25%.
Não perdemos esse espaço comercial por causa da crise, mas antes. Perdemos porque a prioridade da política externa era a relação Sul-Sul, e os países desenvolvidos ficaram em segundo plano. Acho que a visita do Obama ao Brasil marca uma mudança, assim como a visita da Dilma a Nova York. Há áreas que não estão sendo tocadas que são muito importantes, como o acordo de bitributação, o acordo de garantia de investimentos. Antes isso favorecia empresas estrangeiras no Brasil. Agora favorece empresas brasileiras também.
Há três aspectos importantes a resolver: como conectar os interesses econômicos e comerciais do Brasil com os dos EUA; como os EUA vão lidar com o fato de o Brasil começar a ocupar espaços globais, quando antes eram vistos como um país influente e moderador apenas na região; e o Brasil tem que resolver o que quer da relação com os EUA. É cooperação?
Não estou pensando só na área comercial, que depende muito da iniciativa privada. Mas há muita possibilidade de cooperação na área de inovação, tecnologia da informação, na qual os EUA são o país mais desenvolvido do mundo. Por iniciativa deles, firmamos no governo Lula um acordo de energia e outro de cooperação em etanol, uma série de coisas que a gente não levou adiante. Então precisamos resolver o que a gente quer. Sem abdicar de soberania, sem nada. Estou falando de países que têm respeito mútuo e que defendem seus interesses.
É nesse sentido que a relação é importante porque oferece uma oportunidade enorme para darmos saltos qualitativos. O Brasil está num estágio de desenvolvimento em que a introdução de novas tecnologias propicia esse salto, e nos EUA existem áreas que não são sensíveis politicamente com as quais o Brasil poderia, através de instituições públicas ou privadas de pesquisa e desenvolvimento, ter uma aproximação maior.
O Brasil é um país que, quando foi importante, como na Segunda Guerra Mundial, esteve do lado dos EUA. O que os EUA não entendem, ou não entendiam, é que o Brasil defenda seus próprios interesses. Aqui na região os países de uma maneira ou de outra se acomodam à posição americana. O Brasil não. E isso é sempre, não é só com Lula ou Fernando Henrique.
O exemplo mais dramático disso é no caso do barão do Rio Branco [chanceler de 1902 a 1912, responsável pela demarcação definitiva das fronteiras brasileiras]. O barão do Rio Branco anteviu o crescimento americano e mudou o eixo da política externa da Europa para os EUA. Mas, quando resolveu o problema do Acre, afetou diretamente os interesses dos EUA, cujo Bolivian Syndicate havia arrendado o território à Bolívia.
A única maneira de os americanos chegarem ao enclave era pelo rio Amazonas. O barão fechou o rio para a navegação internacional. Então o Brasil defende seus interesses, é menos flexível, e isso cria fricções.
Qualquer um que não tivesse motivação ideológica a favor dos EUA ou a favor da Alca a qualquer preço, que tivesse uma posição objetiva na defesa do interesse brasileiro, viu que era impossível sair o acordo.
No mesmo encontro, Bush quase aceitou a nossa proposta para de um acordo comercial 4+1, entre os EUA e os países do Mercosul. Isso abria um caminho paralelo ao projeto original da Alca. Se não fosse a Condoleezza Rice, na época assessora de Segurança Nacional, Bush ia concordar. Ela segurou, disse que seria preciso ouvir antes o chefe do escritório comercial da Casa Branca.
O livro também detalha minha proposta de diferenciação, de colocar o Brasil num novo patamar entre os parceiros dos EUA. O Thomas Shannon, atual embaixador no Brasil, e o Richard Hass, na época diretor de Planejamento Político do Departamento de Estado, tiveram a sensibilidade de perceber que o Brasil era diferente do resto da América Latina.
Eu tinha feito para que ocorresse no final do governo Fernando Henrique, mas os americanos guardaram e deram para o Lula. Dos grupos de trabalho criados em junho de 2003 [quando foi firmada a parceria estratégica], poucos avançaram. Mas hoje você tem uma estrutura. Se a gente for fazer uma ação importante do ponto de vista tecnológico ou de cooperação em energia, não precisa criar nada. Os mecanismos estão esperando que haja vontade política dos dois lados para serem levados adiante.
Quando eu estava em Washington e houve a campanha de 2002, eu pedi instruções a Fernando Henrique e propus tratar igual todo mundo que fosse lá. Lula ia em fevereiro, mas cancelou e mandou em maio o José Dirceu, na época presidente do PT. Depois eu vim em novembro para o Brasil, tive contato com eles para preparar a visita de dezembro, o Lula ficou lá em casa duas vezes. Quando eu conversei com ele para sair de Washington, ele me convidou para ficar no governo.
Nestes anos todos em que eu critiquei muito a política externa, o Lula não passou recibo. Sempre que me vê ele me dá um abraço. A minha crítica foi política, não era uma crítica pessoal ao Celso Amorim ou ao Lula. Era uma visão diferente, estamos numa democracia, cada um tem o direito de defender sua posição.
A discussão continua, porque foi assinado com Obama o compromisso de negociar um acordo na mesma linha e não sei como vai ser a atitude do PT. A questão é que é preciso diferenciar o que é transferência de tecnologia do que é salvaguarda tecnológica. As pessoas na época não entendiam ou não quiseram entender a diferença.
Nosso objetivo era consolidar a base de Alcântara como um centro importante de lançamento de satélites comerciais, de comunicação. Para atingi-lo, precisava ter um acordo de salvaguarda tecnológica, porque do contrário nenhuma empresa americana --e os EUA detinham na época 85% do mercado de satélites-- iria lançar de lá. Ou você tinha o acordo ou não tinha a base. Não temos até agora. Fizemos um acordo com a Ucrânia que era exatamente igual ao americano.
Os assessores parlamentares nessa área externa têm muita força, então eu comecei a fazer o churrasco para eles na embaixada, que continua até hoje. Hoje é diferente, depois do Lula e da Dilma. Como eu procuro mostrar no livro, de 2004 para cá mudou a natureza da posição do Brasil no exterior. Antes era uma dificuldade abrir espaço porque, sobretudo depois do 11 de Setembro, ninguém se preocupava com a América Latina, com o Brasil.
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